quarta-feira, 21 de março de 2012

Com os avanços da medicina, bebês debilitados e com síndromes raras sobrevivem. Eles dependem de UTI e da força ímpar de suas mães.



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A aeroviária Rosana Greco e o filho, que nasceu há seis meses e respira com a ajuda de aparelhos(Foto;)
"Não penso sobre quanto tempo Fernandinho vai viver. As outras crianças entram e saem. Meu filhote e eu vamos ficando. A cada mês faço uma festa de aniversário"
ROSANA GRECO
Contam-se no país 16 678 leitos em unidades de terapia intensiva para recém-nascidos e crianças. Desse total, um quinto é ocupado por pacientes crônicos em internação prolongada por meses ou anos. Quase 3,4 mil brasileiras estão enclausuradas nessas UTIs enquanto os filhos desafiam a morte. Muitas vezes sem ver a luz do sol e a cor da rua, elas se exilam da vida profissional e pessoal, deixam de lado o marido e os outros filhos. Cercadas de monitores, cateteres, tubos, bombas de infusão e respiradores que avivam seus pequenos, enfrentam um jogo de tudo ou nada. O que sabiam antes pouco serve no estressante mundo hospitalar: elas têm de aprender a ser mãe de quem está por um fio. Devem lidar com um corpo frágil, que nem sequer pode mamar seu leite e se aquecer no seu colo. A rotina da criança tampouco lhes pertence – médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e fonoaudiólogos decidem tudo. À primeira vista, o grupo mais parece um batalhão de intrusos interpondo-se na relação mais tenra, primitiva e indispensável que se estabelece entre mãe e bebê no início da existência dele. É preciso lucidez – algumas entrevistadas citam também espiritualidade – para assimilar a árida realidade de uma UTI.
Primeiro, pelo inesperado. A gestante entra na maternidade para parir um sonho e, no lugar dele, se depara com doenças incuráveis e adversidades. Em geral, é este o enredo: elas perdem o chão com a notícia de que o rebento não deixará o hospital. Mesmo informada pelo exame cariótipo fetal de que o filho nasceria com síndrome de Edwards, a fotógrafa Daniela Nunes Frison, 34 anos, só viu a tradução disso na prática. “Raphael saiu da sala de parto direto para a UTI da Pro Matre, em São Paulo. Nunca foi para casa”, conta. Não demorou a perceber que perdera o protagonismo. “Havia uma emergência, meu bebê precisava dos médicos para se salvar.” Aos 4 meses, o menino foi de ambulância para o Hospital Infantil Sabará, onde ocupa um dos 28 leitos da UTI pediátrica, morada de outros quatro doentinhos crônicos. “Eu li tudo sobre o assunto”, diz a fotógrafa apontando o laptop. “A síndrome causa problemas neurológicos, cardíacos e pulmonares, torna o portador incompatível com a vida.” A despeito disso, a mãe canta para o filho, conversa. “Digo que ele tem uma irmã, Giovanna (4 anos), que o espera lá fora. Peço que resista e se aprume, porque o pior já passou.”
O resumo feito, no mesmo Sabará, pela guia de turismo Patrícia Longo Schneider, 37 anos, é real e preciso: “Perdi meus poderes”. Sentiu-se impotente nas vezes em que o filho foi reanimado em paradas cardíacas, resgatado de convulsões e entubado. Patrícia, a ágil e experiente mãe de segunda viagem – tem Beatriz, 5 anos –, uma expert em dar banhos e fazer papinhas, se esvaziou. Seu Bernardo, 9 meses, teve os dois rins retirados na tentativa de contornar a síndrome de Denys-Dhash, que produz tumores nesses órgãos. “Fiquei amuada no meu canto vendo a correria em torno dele. O máximo que fazia era tocar de leve a cabecinha, com medo de desligar cabos que o conectavam às máquinas. Só o coloquei no colo aos três meses de internação. Pensei: ‘Sou mãe, ele é meu, de novo’.” Em agosto, o bebê chegou a trocar a UTI por um quarto no hospital, mas pegou uma virose e voltou. Há oito meses, se submete a sessões diárias de hemodiálise. Terá de ganhar peso para enfrentar um transplante renal.

Voltar ao trabalho?
"UTI tem altos e baixos e exige paciência. É como se Larissa subisse uma escada com dificuldade. Ela toma fôlego e recomeça."
DUCINELI BOTELHO
"A medicina criou uma geração de crianças que dependem de suporte para viver. Precisam de traqueostomia, gastrostomia, cuidados para evitar embolia..."
EDUARDO TROSTER, COORDENADOR MÉDICO DA UTI PEDIÁTRICA DO HOSPITAL ALBERT EINSTEIN
Mãe de dois adolescentes, de 17 e 15 anos, a aeroviária Rosana Greco Fernandes, 39 anos, não contava com a síndrome de Patau em seu caçula, Fernando, 6 meses, fruto de uma gestação-surpresa. “Procuro não pensar quanto tempo o meu filhote vai viver. As outras crianças entram e saem; Fernandinho e eu vamos ficando. A cada mês completado, faço uma festa de aniversário”, revela no Hospital São José, no Rio de Janeiro. Esperto, ele acompanha com o rosto a voz de Rosana. “Meu bebê nasceu sem o nervo óptico e não enxerga. Tem seis dedinhos, um defeito no pênis e a epiglote dele é tão fina e mole que não consegue engolir. Depende de sonda para se alimentar”, afirma. Ela está às voltas com um dilema: terá de reassumir o trabalho, na Gol Linhas Aéreas, e ficará bem menos tempo com o filho.
O problema profissional de Ducineli Botelho, 35 anos, professora da Universidade de Brasília, foi resolvido com uma licença. O marido, José Setubal, também funcionário público, se transferiu para São Paulo. Ambos permanecem com Larissa na UTI do Hospital Israelita Albert Einstein. Já vai fazer dois anos. Em outubro de 2009, a mulher visitava a família em Fortaleza quando descobriu que o líquido amniótico havia secado. Ao parto de emergência se seguiram 40 dias de sufoco. O diagnóstico de Larissa era uma interrogação, a barriga dela distendia – e ainda pegou uma infecção generalizada. “A equipe disse que não havia nada a fazer e que minha filha não aguentaria a viagem para um centro maior”, lembra Ducineli. Sua resposta à época comprova o perfil heroico que começava a incorporar: “Se ela vai morrer, prefiro que morra tentando”. Numa UTI aérea, voou com marido e bebê. “A epopeia durou 12 horas, com turbulência, duas aterrissagens e parte do caminho feito de ambulância, porque o Aeroporto de Congonhas não autorizou o pouso.” A confirmação da doença renal policística autossômica recessiva levou Larissa à sala de cirurgia para a retirada dos dois rins. Em janeiro deste ano, voltou para um transplante. Mas está entubada, pois seu organismo miúdo ainda rejeita o órgão herdado de uma criança de 3 anos. Vai manter-se em hemodiálise até o novo rim engrenar. “Para estar aqui, é preciso três coisas”, revela a mãe. “Fé em Deus, amor incondicional e paciência. É como se Larissa estivesse subindo uma escada com muita dificuldade. Ela para, toma fôlego, se reanima e recomeça.” Enquanto isso, Ducineli espera. E produz muito leite. Doa parte para um banco. “Já foram inúmeros litros do meu sangue branco.”
Traço comum às quatro entrevistadas: a esperança desmedida de dias melhores. “A medicina não é uma ciência exata e ao médico não cabe ser prepotente. Não se pode dizer que elas estejam erradas no otimismo”, diz Eduardo Troster, coordenador médico da UTI pediátrica do Einstein, com 30 anos de experiência. “Antes, bebês como esses, considerados inviáveis, morriam. Com os avanços da medicina e da tecnologia, cada vez temos mais pacientes crônicos e complexos na UTI. Criamos uma geração de crianças que dependem de suporte para tudo: de traqueostomia para respirar, gastrostomia para se alimentar, prevenção de osteoporose, porque ficam imobilizadas, cuidados para evitar trombose e embolia pulmonar, entre outros.” O perfil da mãe também mudou. “Ela acaba se tornando especialista naquela criança e dá informações para a equipe. Põe a máscara, participa de procedimentos invasivos, é mais uma pessoa para ajudar a evitar erros”, enumera. A vinda das mães para o front é recente. “Só em 1990, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, os hospitais foram obrigados a aceitar um dos pais em tempo integral”, lembra Lucília Santana Faria, 22 anos de UTI pediátrica, coordenadora médica da unidade do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. “Antes, elas visitavam os filhos por uma hora e tinham de sair. Choravam na porta, as crianças lá dentro.” Ainda hoje, há médicos que se queixam de que mães atrapalham e a qualquer alteração no monitor, colocam a enfermagem em pânico. “Discordo, o benefício é maior. A criança fica calma, sente-se segura, cria condições para a melhora”, relata Lucília.

Em último lugar
"Canto, converso, peço para o Rafa resistir. Ainda não sei se ele vai conseguir ver, andar e falar. Mas estarei sempre com ele."
DANIELA FRISON
As mulheres pagam um preço alto por tanta valentia, sacrificando a própria saúde. “Esquecem de si, ignoram sintomas, muitas vezes ficam próximo de se despersonalizar”, diz Germana Savoy, psicoterapeuta do Sabará. “Fazemos tudo para humanizar a UTI, mas acontece.” Ela explica: “Desautorizadas na maternagem, porque a equipe sabe mais que elas, podem evadir-se da sua função, deixar o bebê. Ou ocorre o oposto, quando se envolvem muito com a patologia do filho, rompem laços sociais, familiares e profissionais”. Para suportar, vão se adaptando ao ambiente, que é agressivo. “A estética hospitalar, o ruído dos aparelhos e alarmes, as emoções dramáticas nos corredores, tudo é pesado demais”, observa Germana. “E elas acabam de pendentes do ambiente, como a vítima de seu agressor.” Ocorre também culpa exacerbada, em mães que se julgam responsáveis pela anomalia do filho. E ainda depressão, síndrome do pânico, distúrbios de sono e alimentares.
A dedicação exclusiva ao filho faz os homens se afastarem. Na UTI, de cada dez casadas, três são abandonadas pelo marido nos primeiros seis meses. Em um ano de internação, a separação atinge 50%; acima desse período, 70%. “Às vezes, sou dura, digo para uma mulher que deve sair para jantar com o marido, ir às sessões de musicoterapia do hospital”, conta Lucília. Ela narra um episódio de extremo adoecimento. Depois de perder o filho, a mãe quis ajudar a preparar o corpo. Findo o processo, comunicou que se arrumaria para acompanhar a criança. A equipe imaginou que se referia a ir no carro funerário para a cidade da família. “Mas estava sendo literal: foi ao hotel onde costumava tomar café da manhã, subiu até o último andar e se atirou”, lembra Lucília. “Perder um filho não tem nome. Há uma inversão na ordem natural da vida, e isso pode ser insuportável”, observa o doutor Troster.
“Eu já conversei com Deus: se for impossível a recuperação do Rafa, ele pode decidir. Eu vou aceitar”, afirma Daniela. Ela se apoia no grupo do Facebook “Mães da UTI”, onde se leem frases como: “Os filhos não são nossos. Recordam-se? Foram apenas emprestados”. Exuberante no seu otimismo, Patrícia estende às outras mulheres da UTI suas descobertas. Algumas delas: “Chorar perto do filho atrapalha”; “Na UTI, dorme-se duas horas, a insônia destrói, traz desânimo, faz a gente ver defeitos nos médicos, na instituição. Nessa hora, o remédio é descansar”. Então, ela sai de cena e cochila na sala dos pais. Desde dezembro longe de sua Mogi das Cruzes (SP), Patrícia voltou para casa uma única vez, no Dia das Mães, e teve uma conversa com Beatriz. “Eu disse: ‘Filha, o Bernardo está muito, muito doente. Os médicos estão fazendo tudo para ele sarar e não virar uma estrelinha’. E minha menina entendeu: ‘Mãe, virar estrela é morrer, não é?’ Explicar a morte quando ela pode estar tão perto de nós não é tarefa fácil.”
Imaginação e equilíbrio
"Eu tocava a cabecinha de Bernardo, de leve, com medo de desligar os cabos que o ligavam às máquinas. Peguei no colo aos três meses de UTI. Pensei: ‘Ele é meu, de novo’."
PATRÍCIA SCHNEIDER
Elas recorrem a lembranças prosaicas para não perder o prumo. Ducineli se entrega ao verde. “Tenho saudade de andar pela natureza, em Brasília. Fecho os olhos, enxergo o lago Paranoá. Estou sedentária, engordei 22 quilos, me faz falta caminhar.” Patrícia se imagina dormindo na própria cama, de pijama – na UTI deita-se de camiseta e calça bailarina –, lavando o cabelo sem pressa, comendo em prato de louça no lugar do marmitex plástico. Daniela diz que a família está balançada, e fica pensando em um jantar calmo com a filha, Giovanna, tendo Rafa ao lado e o marido, Marcos, servindo queijo e cervejinha. Rosana restaura a memória da época em que, nas pausas, ficava de papo para o ar, sem relógio. Ou vendo um filme. UTI, no entanto, requer ação e não sonho. Então, sempre que podem dão uma escapadinha, deixando um parente no posto. Ducineli tratou de alugar um apartamento e corre para o refúgio de madrugada, cozinha com o marido, respira. “Se você não está inteira, só atrapalha. Também aprendi a confiar na equipe.” Ao lado da filha, escreve uma tese de doutorado que entregará no fim do ano. Daniela tenta trabalhar à beira do leito. “Minha vida parou, perdi negócios, tenho que voltar a fechar contratos de cobertura fotográfica de eventos infantis”, afirma. Ela convoca profissionais para substituí-la e edita no computador as imagens que eles enviam. Procura nem pensar que o marido pode se encantar com outra. “Não dá tempo de namorar, estou esgotada”, diz. Conta que o aperto de mão e o abraço forte de Marcos já rendem prazer. Patrícia crê que “a cumplicidade do marido é mais forte que noites de amor”. Para Rosana, sexo virou comemoração: “Depende de Fernandinho. Se ele está bem, a gente relaxa, tem clima. Se não respira direito, Sérgio e eu só falamos nisso”.
As entrevistas são permeadas de grandes achados. Ducineli, por exemplo, não precisa de mais nada: “Saí de Brasília com uma malinha de grávida, cheguei a São Paulo com roupas emprestadas e, mesmo acampada, estou muito bem”. Entendeu também que UTI “não é fim de linha para pacientes terminais, mas para quem precisa de cuidados especiais”. Elas são unânimes em declarar que as crianças ensinaram “a olhar o problema de frente”, que mudaram suas crenças e as levaram à compreensão de que a vida não nos pertence. “Planos”, diz Patrícia, “não devem nos guiar – ganhar um dia já é vitória.” Mas elas não declamam apenas lições subjetivas. Advogam para si o direito ao home care. Com uma estrutura em casa parecida com a de uma UTI, poderiam integrar o filho à família. Estão brigando com os convênios, fazem ofícios, enviam laudos médicos, pedem liminares na Justiça... Mas essa é uma outra história de resiliência materna para contar depois.
Fotos Daniela Frison, Ducineli Botelho, Patrícia Schneider, Chris Parente; Rosana Greco, Marcelo Correa/Produção Chris Böller/Cabelo e maquiagem, Aurora Porto

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