quarta-feira, 3 de abril de 2013

O encantador de cães-guia.


O psicólogo George Harrison dedica sua vida à formação de cachorros que transformam a vida de quem não enxerga.

O instrutor George Harrison, fundador do Instituto Cão-Guia Brasil, e a cadela Pucca (Foto: Arquivo Pessoal)

Julho de 2001. Copacabana, Rio de Janeiro. O carioca George Harrison, então com 25 anos, participava de um evento sobre veterinária e comportamento animal. Entre os palestrantes convidados, estava a brasileira de descendência russa Ethel Rosenfeld, ao lado de seu inseparável labrador de linhagem inglesa, Gem. Harrison ficou encantado com a sintonia com que os dois se comunicavam. Ela, cega. Ele, seu cão-guia.
Ethel perdeu a visão aos 13 anos, em um acidente cirúrgico. Um tumor havia sido detectado em seu cérebro. No dia da cirurgia, os médicos perceberam que não se tratava de um tumor maciço, mas líquido. Sua retirada deveria ser feita com uma agulha que, por acidente de percurso, atingiu o nervo óptico. Era 5 de julho de 1959. Naquele dia, Ethel perdeu, além da visão, todos os movimentos do pescoço para baixo. Nem deitada conseguia ficar direito. Faltava-lhe equilíbrio. Era contornada por travesseiros para não rolar da cama. Um ano e meio depois, após tratamentos e fisioterapia, recuperou os movimentos que havia perdido. Menos a visão. A medicina a considerava cega. Mas ela ainda “enxergava” sombras e borrões.
Certa noite de fevereiro de 1997, Ethel fazia tricô. Já era tarde, lá pras 23h. Como de costume, foi pegar um novelo na sacola em que sempre guardava lãs nas cores preta, cinza e branca – tonalidades que era capaz de distinguir. Naquela noite, todos os novelos se misturaram. Do nada, de repente, tudo ficou preto. Ela tentou, em vão, jogar os novelos sobre a mesa e, depois, os aproximou à parede branca para ver se conseguia identificar algum contraste. Nada. Sua mão encontrou o disjuntor na parede. Por alguns minutos, ficou apertando-o para cima e para baixo. Aos prantos, ligou para um amigo: “Fiquei cega!”. Com sono, ele respondeu: “Você está louca? Desde que te conheço você é cega”. Para ela, perceber sombras e vultos era um alívio, um ponto mínimo de referência. Perder o pouco que tinha foi desesperador. “Foi como fechar os olhos bem forte e não abri-los mais”, diz. Ethel tinha 49 anos. 
Como a maioria dos cegos, Ethel andava com bengala. O instrumento longilíneo de metal a ajudava a identificar degraus, postes e calçadas. Mas não a protegia de obstáculos aéreos, como orelhões e arbustos, e até mesmo de pessoas, como mendigos no chão. O cego precisa andar batucando a bengala de um lado para outro. Isso, de certa forma, afasta as pessoas. Nos Estados e na Europa, é comum que funções da bengala sejam exercidas por cachorros. Os cães-guia. Esses animais são selecionados ainda filhotes e, até atingirem, em média, dois anos, passam por treinamentos intensivos que os tornam aptos a levar pessoas cegas de um lugar para outro, com segurança, desviando de todos os obstáculos. Não se sabe ao certo a origem dos cães-guia. Mas escavações em Pompeia – cidade italiana devastada pela erupção do vulcão Vesúvio em 79 d.C. – já registraram desenhos que pareciam ser de um cego guiado por um cachorro. O treinamento de cães para a função de guia começou a ganhar forma após a Primeira Guerra Mundial, como uma tentativa de reabilitação de soldados feridos. No Brasil, os cães-guia só começaram a ser percebidos pelas ruas há 15 anos, como resultado de um esforço conjunto de alguns adestradores e cegos - entre eles Harrison e Ethel.
Na época em que Ethel perdeu a visão, fevereiro de 1997, não existiam no Brasil escolas especializadas no treinamento de cães-guia. Com a ajuda da sobrinha, Ethel preencheu a papelada da ficha de inscrição para uma instituição americana. Oito meses depois, recebeu por telefone a confirmação de um cachorro “compatível”. Junto com um amigo, o empresário gaúcho Marco Antonio Bertoglio, foi para Nova York. Lá, ganhou Gem. Juntos, passaram por quase um mês de adaptação. Gem foi seu presente de aniversário de 51 anos. E viveu com ela por quase 12 anos.
Ao colocar as patas no Brasil, o labrador sofreu com o calor intenso do Rio de Janeiro. Mas a dupla, ou melhor, time – como preferem chamar os instrutores de cães-guia – teve de passar por obstáculos muito piores. Uma sociedade desinformada, atendentes de restaurantes e hotéis que não permitiam a entrada de animais e “ponto final”, funcionários de ônibus, táxis e metrôs(assista ao vídeo abaixo) que impediam sua passagem. Dificuldades que não puderam ser superadas com ventiladores. Ethel caiu em depressão. Ligou para a instituição americana para devolver Gem. Não achava justo um cão-guia ser desperdiçado com uma mulher que não saía mais de casa. Do outro lado da linha, o instrutor lhe respondeu: “Aguente firme. Esse é o preço pago pelo pioneirismo”.
Ethel foi a primeira brasileira a ter um cão-guia no Rio de Janeiro. Sempre lutou pelos direitos e inclusão social dos cegos. Formou-se em Letras, fez mestrado em Educação Especial, tornou-se professora e consultora de deficientes visuais. Para concluir os estudos, precisou, além de muita dedicação, habilidade para andar pelos degraus irregulares da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde estudava. Certa vez ao sair da aula, rolou escada abaixo e bateu a cabeça. Com Gem, ela nunca caiu. O time foi um dos primeiros a levantar a “bandeira” dos cães-guia e a lutar para torná-los realidade no Brasil.
Com um amigo advogado e o apoio de alguns parlamentares, Ethel ajudou a escrever o projeto de lei que permite o ingresso e permanência de cães-guia em lugares públicos e privados de uso coletivo. Após seis anos de tramitação, a lei nº 11.126  foi sancionada. Ethel e Gem foram convidados a participar da cerimônia oficial de assinatura do decreto 5.904/06 que regulamenta a Lei, em Brasília. A conquista no Congresso foi fundamental para assegurar os direitos dos cegos guiados por cães. Mas Ethel acredita que a compreensão da sociedade sobre a importância desses animais foi impulsionada pela novela América, transmitida pela TV Globo em 2005.
A autora da novela, Glória Perez, conheceu a história de Ethel pela mídia e decidiu criar um papel inspirado nela. Após alguns minutos de conversa no apartamento de Ethel, no bairro do Flamengo, Glória foi convencida a dar vida a dois personagens cegos: Jatobá, interpretado pelo ator Marcos Frota, e Flor, vivida por Bruna Marquezine. O primeiro, inspirado em Ethel, perdeu a visão. A segunda nasceu sem ela. “São situações diferentes. Em uma você precisa aprender a viver sem algo que até então era essencial. Na outra, é preciso explicar a alguém o que é um céu, o sol, que amarelo é diferente de azul...”, diz Ethel, que orientou, pessoalmente, os ensaios dos atores. Nas ruas, Gem era confundido com o “senhor Quartz”, o cão-guia de Jatobá, e Ethel reconhecida como uma das porta-vozes da causa. Por isso, mesmo sem ser veterinária ou especialista em animais, ela foi uma das convidadas para o evento em que George Harrison a viu pela primeira vez. Tímido como o beatle de mesmo nome que o seu, Harrison não se aproximou de Ethel e Gem no dia do evento. Ficou admirando o time à distância. Naquele momento, descobriu o que queria fazer da vida: formar cães-guia.
Quando criança, Harrison  acordava bem cedo nos finais de semana para assistir a programas de TV sobre o comportamento e a vida dos animais. Era louco por bicho. Gostava de cachorro, gato, peixe, papagaio. Cresceu rodeado por cães. No final da adolescência, mudou-se com a mãe para um apartamento pequeno. Fazia de tudo para convencê-la a voltar a ter um cachorro. Dona Maggy “vetou” a entrada de rottweillers e dobermanns, mas amoleceu quando o filho apareceu em casa com Gaia, uma filhote de Akita. Impôs uma única condição: o cachorro deveria ser educado. Sozinho, com métodos amadores, Harrison conseguiu que o maior estrago feito pela cadela fosse um par de chinelos roídos.
Naquele ano, usou toda a sua mesada para viajar. Não para lugares divertidos com os amigos, como fazia desde os 13 anos, mas para São Paulo, para estudar adestramento de cães. Durante o curso, que durou cerca de 20 dias, ligaram do Rio procurando um adestrador. Mesmo com alguns dias de experiência, Harrison foi recomendado. Tinha apenas19 anos. Era o primeiro cliente. Logo, já tinha três. Harrison trancou, escondido da mãe, o último ano da faculdade de Desenho Industrial e passou a se dedicar ao adestramento de cães.
Ao observar o comportamento de Gem, Harrison percebeu que sua postura ia muito além de comandos para sentar ou “dar a patinha”. O cão que viu no palco daquele evento em Copacabana não era apenas obediente. Gem era especial. Guiava. E guiava por amor. Alguns dias após o evento, Harrison entrou em contato com Ethel e pediu-lhe ajuda para realizar o sonho de se tornar um instrutor de cães-guia. Não havia cursos no Rio de Janeiro. Ele também não tinha condições de ir para fora do país. Ethel não era treinadora, mas conhecia aquele universo como poucos na época. Ela o orientou a fazer um curso de mobilidade para treinar cegos a se locomover com a bengala. Para entender melhor o comportamento dos cachorros, Harrison ingressou na faculdade de Psicologia. Causava impaciência nos colegas toda vez que levantava a mão para fazer paralelos com cachorros sobre o que aprendiam em aula. Seu trabalho de conclusão de curso foi o desenvolvimento de um modelo próprio de treinamento de um cão-guia. A “cobaia” foi Rhaíssa, uma labradora preta comprada em um canil do Embu das Artes, em São Paulo.
Rhaíssa ficaria no lugar de Gem, que já estava velho e havia sido diagnosticado com um câncer no focinho. Juntos, Ethel, Rhaíssa, Harrison e Gem aprenderam a desviar de postes e sacolas de lixo das ruas do Flamengo. No final do treinamento, Ethel não teve coragem de aposentar Gem e trocar de cão-guia. Rhaíssa acabou presenteada a um músico, morador de uma comunidade de baixa renda em Tribobó, São Gonçalo (RJ). Mas teve de se aposentar mais cedo e passar a viver como um cachorro de estimação na casa de um amigo de Harrison. O instrutor não desanimou e emendou o treinamento de um segundo cão-guia: a labradora Zuca, que até hoje acompanha o estudante de administração Jonas Santiago em seu programa preferido: velejar.
Harrison sentia-se preparado para treinar cães-guia, mas faltava dinheiro para seguir em frente. O treinamento de um único animal gira em torno de R$ 30 mil – desembolsados pela escola, ou no caso, pelo próprio instrutor. A alternativa encontrada foi separar parte do que ganhava com o adestramento particular para se dedicar ao treinamento de cães-guia. Aos poucos, conseguiu apoio de pet shops e veterinários, com vacinas e rações, além de pequenas doações que variavam de R$ 50 a R$ 200. Com o dinheiro da venda da casa que morava com a ex-companheira, construiu um canil e voltou a morar no apartamento da mãe. Em 2009, o canil ganhou nome: Instituto Cão-guia Brasil, em que trabalham uma amiga voluntária e três funcionários encarregados da manutenção e limpeza do lugar. Harrison faz a avaliação dos filhotes, a socialização – em alguns casos, essa fase é feita por famílias voluntárias – leva o cachorro para casa e, por cerca de um ano e meio, treina-o diariamente, de domingo a domingo. É ele também quem entrevista cada um dos candidatos a receber um cachorro e não se cansa até encontrar o dono “ideal”. Acompanha, de perto, o período de adaptação entre o cego e seu cão-guia. Distribui “puxões de orelha” quando o time comete deslizes e os faz repetir o exercício até acertarem.
Em dezembro de 2011, Harrison conseguiu um patrocínio que proporcionou sua sonhada dedicação integral ao treinamento de cães-guia. Infelizmente, cerca de um mês depois, descobriu um câncer no testículo direito. E, “pior”, a recomendação médica de que, se após a operação de retirada do tumor tivesse que fazer quimioterapia, deveria se afastar temporariamente de animais. (Pacientes em quimioterapia têm uma forte queda na produção de glóbulos brancos, responsáveis pela defesa do corpo. Isso facilita infecções por fungos e bactérias) Felizmente, ele não precisou passar pela quimio, mas teve de adiar o treinamento da labradora Júlia por seis meses. “Por isso ela foi entregue um pouco mais velha do que o normal, com três anos”. Em seis anos, 15 cachorros começaram o treinamento. Júlia foi a sétima a conseguir se tornar um cão-guia e, em agosto de 2012, foi presenteada ao analista de sistemas Gabriel Vicalvi. Em breve, algum dos mais de 2 mil cegos que aguardam na fila de espera do Cão-guia Brasil vai receber Fred, um golden retriever. Com Fred, o próximo “escolhido” ou “escolhida” vai experimentar independência, liberdade e qualidade de vida apagadas pela falta ou perda da visão. Ethel está muito orgulhosa do garoto que um dia chegou a ela dizendo que queria ser um treinador de cães-guia. “Ele é um herói.” 

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